Nós, os Desuniformizados
Luiza Marcier
para Forum RioCidadeCriativa, 2011
Pensar em identidade no século XXI significa pensar plural. Teoria dos conjuntos, conjuntos de identidade que encontram pontos de semelhança, pontos de diferença, convergências, divergências, tecendo o campo da diversidade. Importante perceber a existência desses conjuntos em uma forma multidimensional e também toda a possibilidade de agrupamentos e reagrupamentos a partir de novas perspectivas propostas.
Toda escolha é, sem dúvida, abrir mão, abrir mão de algum caminho; não que este caminho-não-escolhido não se faça presente dentro daquele escolhido, afinal todo caminho se faz também por aqueles postos de lado. Todo o “não” fazendo parte de um “sim”. E isso faz parte de um pensamento não linear, fundamental para a sobrevivência contemporânea.
Para um mundo cartesiano e esquadrinhado, esta multiplicidade de vias poderia parecer desesperador, mas, por outro lado, este pensamento não linear sempre fez parte do espírito humano, sobretudo do fazer e do pensar femininos.
As mulheres têm na história da moda uma participação ativa - ativista mesmo - do lirismo mítico da construção da vida com os fios. Ariadne e seu fio para salvar Teseu na volta do labirinto de Minotauro. Penélope e seu infindável manto tecido de dia e destecido de noite à espera de Ulisses. Aracne, ganhando o desafio proposto por Atena e, por conta do seu talento, sua transformação final em aranha. As 3 moiras do destino, que conduzem a sabedoria da vida: uma dá o fio, outra enrola o fio, e uma ainda corta o fio.
São exemplos gregos, mas, se procurarmos em outras passagens, não faltarão exemplos: uma cronologia da moda que, como o tempo das mulheres, pode se dar em ziguezagues, de uma forma não linear.
O ser humano que começa a fazer objetos - de pedras lascadas, pedras polidas a objetos de cobre, bronze ou ouro - é o mesmo que começa a fazer arte e é o mesmo que começa a fazer moda: a construir outras peles sobre o próprio corpo.
Seja através de peles dos animais, de onde surge a ideia de se dobrar um plano, ajustá-lo e desajustá-lo sobre o corpo, seja através de construções têxteis a partir de estruturas de enlaçar e entrelaçar fios e envolver o corpo, a construção da roupa tem uma dimensão milenar.
De um lado percebemos entre as descobertas algo que poderíamos ilustrar como “especificidades” culturais e, de outro, um pertencimento global à ideia de humanidade.
Segundo muitos autores, a moda surge com a era moderna, no final da Idade Média e no Renascimento, como a busca do novo e da mudança, promovido sobretudo pela distinção entre classes.
No entanto, para definir a moda, outros autores partem de conceitos diversos, ou seja, ligam a moda à trajetória dos trajes e refletem sobre os fluxos de informações do fazer dos objetos-roupa.
James Laver, em seu livro “A Roupa e a Moda”, enuncia que a invenção da agulha é tão importante quanto a invenção da roda. Pois esta ferramenta, ou instrumento, permitiu costurar a pele que cobria o homem no início da sua vida como homem e foi portanto grande divisor de águas entre o homem-macaco e o homem-homem.
Por mais que individualidades ou manifestações culturais possam se dar localmente, elas se articulam como partes de um todo – assim, vemos técnicas migrarem como plantas, e serem adotadas culturalmente, a ponto de não acreditarmos que um dia não fizeram parte desta ou daquela tradição local.
A moda não precisa necessariamente lançar um objeto novo, um objeto sem referência, uma sucessão de marcos-zero. A moda é justamente esta construção em teia de referências sobrepostas em parâmetros globais.
Cidades da China e outras, da Capadócia a Seropédica, em uma conexão transcontinental, foram erguidas desde 200 a. C. para servir de entreposto à cultura da seda. Um tecido, uma invenção, uma invencionice de desfazer o casulo de um bicho, bombix mori, e transformá-lo em um longo e flexível fio e em seguida tecê-lo construíram um dos mais belos desenhos de mapas do mundo.
A história da moda se faz também com as percepções da memória projetadas no agora: os trajes negros dos camponeses belgas guardados na reserva técnica do museu da moda da Antuérpia nos permitem compreender todo o preto que colore a moda belga contemporânea de Ann Deumelemeester, por exemplo. Assim como, para entender a moda brasileira, é importante abrir o armário repleto de trajes brancos da reserva técnica do museu do traje e do têxtil, no Instituto Feminino da Bahia. Se a história da moda fosse assim tão recente quanto querem nos fazer crer os europeus modernos, como explicaríamos estas origens e estes ecos?
Ou seja, é preciso perceber a moda como grandes fluxos plurais, globais e milenares, propondo uma visão humanista e livre, mais próxima da cultura do fazer, do pensar e do vestir roupa. É ver a moda como veículo de trocas culturais, a moda como construção de identidades e tratar os objetos-roupa de todas as épocas como chaves, portas ou portais para a construção de uma linguagem e de vocabulários.
Sendo assim, é importantíssimo incluir o vermelho e o pau-brasil - e a própria história do Brasil - como mais um desses macro-fluxos da moda. Desde 1500, a moda está em relação com o “surgimento-descobrimento” do Brasil e sua (in)sustentabilidade. O desejo do vermelho foi capaz de destruir matas na busca de uma cor que significasse.
O nome do país vem da árvore Caesalpinia echinata, o pau-brasil. Uma árvore de 8 a 12 metros de altura apresentando tronco vermelho, utilizado para tingir roupas. O corante vermelho extraído da arvóre já era utilizado pelos índios brasileiros na confecção de sua arte. Aparentemente inesgotável, o pau-brasil se mostrou como uma riqueza imediata e exuberante desde a chegada de Cabral e Pero Vaz Caminha às terras brasileiras. A “brasileína” passaria a colorir as roupas das nobrezas internacionais e a ser utilizada como tinta para a escrita. Em 500 anos, restaram apenas 3% da mata atlântica. O término do ciclo econômico do pau-brasil no século XIXsó se encerra no esgotamento da espécie e com a descoberta de um corante correspondente. Hoje o pau-brasil é raro, encontrado apenas em parques de preservação.
A exploração do pau-brasil, mesmo que como um corte vermelho à natureza do território, colocava nossa terra no mapa dos fluxos do mundo. E de Pindorama, terra das palmeiras, em tupi, passando por outros nomes oficiais como Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, o nome dessa terra passou a Terra do Brasil, e em seguida apenas Brasil.
Difícil não construir uma analogia da natureza do pau-brasil com a cultura gregária do fazer brasileiro: o fato é que esta árvore só produz flor e fruto quando plantada em grupos de mais de cinco indivíduos.
O Brasil como pátria não é só território, localidade, mas é sobretudo gente, nosso corpo-território que carregamos a toda parte. Cor, matéria, forma e corpo podem ser conceitos propostos para a base da compreensão da moda brasileira. E a criatividade é a ação contínua e diária de sobrevivência nestas terras.
A vantagem do conceito de cidade criativa é sua estrutura teia: o conceito de um caminhar não linear, de pontos de partida e pontos de diálogo múltiplos que se encontram em algum lugar de construção.
Os desuniformizados são aqueles que partem para o jogo com suas camisetas coloridas, têm uma noção clara de time, mas cada qual com sua camiseta, sua cor, seu emblema - e jogam juntos.
Não viram casaca porque não acreditam mais em casacas.
O interessante do time dos desuniformizados ( cada um com sua camiseta) é que eles conseguem identificar facilmente seus pares, aquele companheiro de jogo com a camisa da Romênia, com a camisa Cosmos, NY, do Remo do Pará, do Barcelona ou do Real Madrid, Flamengo Botafogo Vasco Fluminense América São Cristovão, ou mesmo com uma camiseta sem nome, sem número e sem emblema comprada numa loja de esporte do Saara - todos, dentro da sua pluralidade, são percebidos como time.
O também interessante do time dos desuniformizados é que eles, com sua aparente indisciplina formal ( aparente, pois levam o jogo muito a sério) em suas mil e uma cores, confundem os adversários – aqueles dos times uniformizados, que ficam desarmados sem saber para quem passar - ou não passar - a bola.
Os desuniformizados são poetas gestores psicanalistas autores monges cubistas saltimbancos caseiros bailarinos institucionais cineastas profetas executivos pintores escultores designers expressionistas produtores impressionistas músicos expositores surrealistas figurinistas ruralistas museólogos ativistas editores escritores e mais, muito mais: plantam árvores, bananeiras, palmeiras. Podem até desenhar em planilhas do microsoft excel e seguem dando saltos mortais em direção à vida.
No Rio de Janeiro, contamos com um grande time de desuniformizados, encontrando-se por acaso, ou programados, para treinos, jogos e brindes. Temos jogado o jogo da cidade. Da cidade evadida à cidade ocupada. Da cidade fervilhante que o Rio se tornou.
Não importa o suporte, galeria museu escola loja palco ou café: desenhamos planos, redescobrimos a cidade e lançamos dados no azul.
É preciso muita criatividade para pegar os 3% que sobraram de nossas matas e replantar ideias em grupos , para que, como as árvores Caesalpinia echinata, seja possível continuamente, em ziguezague, florescer, frutificar e reflorestar o Brasil.
Luiza Marcier, 2011